Pra começar o relato de 2018 eu preciso voltar no tempo...

Eu tinha 19 anos quando tentei o Roraima pela primeira vez, em 1997. Naquela época, a comunicação era complicada, as informações constavam praticamente em guias impressos da Lonely Planet ou em revistas especializadas. Tudo era muito ‘raiz’, o máximo que você conseguia era planejar o trajeto, o resto se organizava ao chegar a cada destino.

Tão fissurado eu era com aquela montanha que encontrei num sebo uma edição surrada de The Lost World de Arthur Conan Doyle, um romance de 1912 inspirado nos cenários dos tepuis venezuelanos. Devorei o livro em dois dias. Li e reli várias vezes, viajei na leitura. Já me sentia o próprio Prof. Challenger. Ouvia o Roraima me chamar.

Paguei a viagem para minha namorada na época. Uma amiga também nos acompanhou. Sem muitos outros recursos, consegui uma câmera simples emprestada de um amigo, daquelas de rolo, para garantir as fotos. Encaramos o Roraima, do jeito que todos fazem, com os serviços das agências locais de Santa Elena de Uairén.

De Paraitepui em diante aqueles gigantes se erguiam no horizonte: lá estavam os cobiçados Roraima e seu irmão malvado, o Kukenan. Pareciam me desafiar. A cada passo eu me lembrava das cenas do livro que se desenrolavam entre batalhas de índios com homens-macaco, dos cenários repletos de dinossauros que habitavam o platô. Meu imaginário estava sedento, eu estava vivendo o livro, ao vivo.

Percorremos os dois primeiros dias conforme o programado. Mas no terceiro dia veio a surpresa... pela manhã, já no Campamento Militar aos pés da montanha minha namorada anunciou que não estava nada bem de saúde. Insistiu que eu continuasse os próximos dias de subida e ela ficaria no acampamento à espera. Obviamente que isso estava fora de cogitação. “A montanha sempre esteve ali e sempre vai estar, um dia eu volto!” e esta foi minha escolha – sempre é, na verdade, por um principio ético que aprendi no montanhismo de nunca deixar ninguém para trás. Com uma dor no peito, abortei a subida e voltamos pela trilha até Paraitepui.

Eu não tinha experimentado tudo o que queria do Roraima. O encontro não tinha sido pleno, verdadeiro... não venci os paredões, não saltei abismos, não cruzei com os dinossauros ou com as cavernas onde habitavam os homens-macaco... tudo o que eu tinha eram algumas fotos, e a certeza de que um dia eu voltaria para um reencontro com o gigante.

Agora, sabe como são as paixões da adolescência?! Pois é... com o tempo, aquela minha namorada já não era tão mais minha... e as poucas fotos que me restavam da expedição foram literalmente incineradas por essa tão ingrata pessoa! Por que não me entregou ao menos aquelas em que só eu aparecia com o gigante???

Enfim que, passado algum tempo, eu já não sentia por ter perdido a namorada, mas a raiva danada por ter perdido todas as minhas com o Roraima essa não passava! Retornar era uma questão de honra. Não sabia quando, não sabia como. Mas sabia que o encontro estaria marcado para algum dia.

A vida seguiu, fiz outras montanhas, viajei, morei no exterior, voltei. No regresso fiz grandes parceiros de aventura e montanhismo que até hoje estão comigo, são compadres, amigos, irmãos da vida. Casei, tive filhos. Aos poucos sentia que o encontro marcado com o Mundo Perdido se aproximava.

Compartilhava seguidamente com meus parceiros de montanha sobre a magia que envolvia aquelas terras ancestrais. Meu olho brilhava. Mas confesso que não via a mesma empolgação da parte deles.

Em 2017, tomei uma decisão. Anunciei para minha esposa que eu precisava me resolver com o Roraima. Precisava de ao menos uma foto de todo aquele imaginário que habitava minha mente há mais de 20 anos. Com minhas crianças já um pouco mais crescidas ela que me acompanhava há tempos sabia o que tudo aquilo que vivi aos 19 anos significava para mim e concordou que era a hora de eu reencontrar o gigante.

Simplesmente bilhetei a passagem para Boa Vista, em setembro. Tentei empolgar meus parceiros de montanha a me acompanharem, ainda cético, mas estava disposto a fazer uma viagem solo, afinal, a questão com o Roraima era algo pessoal.

Depois de um tempo o Luiz anunciou que me acompanharia e comecei a compartilhar com ele todos os detalhes da expedição. Mas confesso que não acreditei que teria companhia até ele bilhetar a passagem de ida e volta, o que aconteceu só no final de janeiro de 2018.

 

5ª Feira – 08 de março

No início de março partimos: 320 km de carro cruzando a Argentina até Foz do Iguaçu e 12 horas em 3 voos em conexão até Boa Vista. Chegamos lá já era madrugada e ‘pernoitamos’ ali mesmo em nossos isolantes térmicos na praça de alimentação vazia, compartilhando um calor insuportável com tantos refugiados da Venezuela que ocupavam o chão do aeroporto – alguns dos mais de 3 milhões que saem daquele país para tentar a vida fugindo do regime Maduro.

 

6ª Feira – 09 de março

Às 6 da manhã, um taxi de cooperativa nos apanhou e seguimos em direção a Pacaraima a 230 km juntamente com outras duas roraimenses que compartilharam o trajeto. Foram 4 horas de viagem regadas a muito tecnobrega esquecido só por algumas piadas para quebrar o gelo.

Uma breve pausa no famoso Quarto de Bode onde tivemos o último contato Wi-fi e horas depois estávamos na fronteira. Lá tratamos de cambiar alguns Reais para Bolívares Fuertes em um comércio local indicado pelas roraimenses do taxi, mas não sem antes termos sido ‘atacados’ por vários cambistas na rua. O volume de dinheiro foi tamanho que tivemos que carregar em uma mochila tiracolo!

Dinheiro trocado, pegamos mais um taxi que nos levou até a divisa onde tiramos o permiso, depois de encarar uma fila enorme compartilhada com venezuelanos que fugiam de seu país.

Oficialmente na Venezuela, os ares logo mudaram. Acenamos para cada taxi ou qualquer carro que nos levasse até Santa Elena de Uairén, a 22 km. Isso levou uns 20 minutos até que um taxi ‘pau véio’ parou. Negociamos a tarifa e escolhemos nosso primeiro destino: uma loja para comprar um rum venezuelano para aquecer as noites na montanha.

Combustível garantido, pegamos um novo taxi e fomos até o terminal rodoviário de Santa Elena, na tentativa de encontrar um ônibus até Kumarakapay (San Francisco de Yuruani). Enquanto aguardávamos os pretensos ônibus aproveitamos para usar a internet em uma lan house e enviar um até breve para as famílias.

Os ônibus nunca chegaram, o país há tempos tá uma bagunça... resolvemos ir para a carretera tirar el dedo. Ninguém nunca parou...! O jeito foi voltar à rodoviária e contratar um taxi para fazer o trajeto até Kumarakapay o que também não foi serviço fácil, pois os taxistas dali não tinham combustível suficiente para fazer o trajeto de 70 km (e depois retornar) – acontece que eles só têm uma cota determinada de combustível a ser abastecida a cada período. Mais um tempo depois, enfim conseguimos achar um abençoado que topou o trajeto, um outro ‘pau véio’ mas com motorista mais falante e que desejava a morte do Maduro!

Logo na saída da cidade tivemos que parar em um posto policial que nos revistou dos pés à cabeça, tomou documentos, nos deu um chá de cadeira e fez acelerar o batimento... não fosse o auxílio do taxista talvez estaríamos em maus lençóis. O taxista nos colocou a par da situação dos venezuelanos do ponto de vista de um morador local, situação muito pior do que ouvíamos na mídia. Revelou que Santa Elena e a fronteira ainda tinham o comércio aquecido por conta do turismo e da atividade nos garimpos, mas que as cidades no centro e litoral estavam uma lástima.

Depois de muitas falas revoltosas do taxista e uma hora depois deixamos o taxi em Kumarakapay, a última vila antes de nossa expedição. Já eram as 4 da tarde e logo seguimos até pousada simples onde passaríamos a noite, uma churuata adaptada às margens da rodovia Troncal 10.

Lá encontramos o Alejandro, responsável pela agência que nos daria a logística na expedição. Detalhe: sempre procuramos fazer nossas expedições de modo autossuficiente, raiz. Mas no Roraima há a obrigatoriedade da contratação de um guia local, um indígena pémon. Observando os pacotes oferecidos pela empresa percebemos que havia pouca diferença entre o preço de apenas contratar o guia e o de contratar toda a logística, incluindo barracas, alimentação e shit tub – também obrigatório no Roraima. Por isso, não hesitamos e escolhemos o pacote completo, apenas com a condição de que seríamos um grupo de dois: eu e Luiz.

Descansamos um pouco, tomamos um banho gelado pra refrescar e fomos jantar numa lanchonete à beira da Troncal. Pollo a la plancha y tostones foi a pedida, iguaria para quem tinha passado um dia inteiro beliscando porcarias entre voos, aeroportos e taxis. Pedimos uma cerveja local para acompanhar e nos serviram a tal de Polar Light, tão transparente que já no visual você sabe que falta malte, ou lúpulo, e quando toma descobre que faltam os dois! Experimentei uns termites – aquele inseto, o cupim, tostado e servido em uma calda escura – uma iguaria apreciada pelos indígenas. Confesso que gostei! O fresco do Luiz não encarou.

Barriga cheia, e com os cupins nadando na Polar Light, voltamos à pousada para checar as mochilas e dormir pra acordar cedo. Alejandro foi atacar um chocolate e descobriu que ele já tinha recebido visitas: entre ir e voltar da lanchonete deu tempo de reunir umas 5 cucarachas jurássicas dentro do pacote! À espera do próximo ataque tentamos dormir.

A ansiedade a mil e os roncos do Luiz renderam poucas horas de sono... Pensei na última vez que estive naquelas terras e que precisei abortar a expedição ainda no terceiro dia por uma persona non grata. Eu precisava me redimir com a montanha. E comigo mesmo.

 

Sábado – 10 de março

Despertamos cedo, comemos arepas quentinhas de um quiosque à beira da Troncal e logo embarcamos no 4x4. O trajeto? 26km de estrada de chão em condições muito precárias em meio aos lençóis da Grande Savana Venezuela, na carroceria da picape. Foram 2 horas que só fizeram a ansiedade aumentar. No final do caminho estava a sede do Parque Nacional Canaima, nas terras dos índios pémon da comunidade de Paraitepui.

Depois de assinar a entrada no parque disparamos na trilha, na frente dos guias, às 9 da manhã. Logo depois da primeira colina íngreme o Roraima se apresentou: um gigante no horizonte! O Luiz logo entendeu o que eu tanto tentava explicar: aquele gigante fica lá, estático, trabalhando como um ímã, atraindo, provocando, desafiando. Parecia que nos chamava... era a mesma sensação que eu tinha 21 anos antes.

Seguimos em passo pesado pela trilha na imensidão de um céu limpo e do sol implacável do meio dia. No horizonte, as nuvens emolduravam a montanha. Uma foto aqui, muitas ali. Ah Roraima, que saudade! Depois de 3 horas alçamos o Rio Tëk. Foi um alívio soltar a mochila depois de 13 km de trilha, prazer só superado pela sensação de tirar as botas e cair na água gelada que descia da montanha pelo Rio Tëk. Encontramos também um poço de água que rendeu até um mergulho!

Uma hora depois nossos guias chegaram. Foi o tempo de almoçar um bocadillo de atum e já pegamos a trilha de novo. Pra ganhar tempo, queríamos fazer os 11 km até o Campamento Base no mesmo dia.

Assim que cruzamos o Rio Kukenan encaramos uma subida íngreme, incessante, compensada por um pôr do sol espetacular aos pés da montanha. Quase no final da subida, à luz do crepúsculo, os pémons nos ultrapassaram.

Chegamos no Campamento Base já eram as 7 da noite. Àquela altura nos perguntávamos de quem tinha sido a bendita ideia de fazer 24 km em um só dia vencendo mais de 1.100 metros de elevação numa pancada, eu com cargueira de 19 kg, o Luiz com 17 kg.

Enfim, fomos para o banho no modo Sibéria no riacho que passa pelo acampamento. Depois jantamos, compartilhamos rum com os pémons e nos jogamos na barraca. O Luiz roncou que nem um T-Rex no seu colchão inflável e eu capotei no conforto do meu isolante térmico de EVA, custei dormir... nem acreditava que eu estava ali, de novo, pronto para encarar o Mundo Perdido! Dali por diante, tudo era novo para mim.

 

Domingo – 11 de março

No dia seguinte despertamos com a luz do sol. Comemos arepas quentinhas com salame e queijo. O Luiz não encarou tudo. Na verdade, nas primeiras mordidas já anunciou que não estava se sentindo bem e saiu para vomitar. Tomou alguns remédios do estojo de primeiros socorros e deitou numa sombra para ver se o mal estar passava. Descobrimos que mais gente estava passando mal, um pémon no dia anterior e um gringo com quem conversei e aguardava o helicóptero para remoção aérea. Talvez alguma contaminação com a água, jamais saberemos...

E a sensação do Luiz não passou... era visível que não estava bem, só não me revelou que estava tão mal – apenas no dia seguinte me contou que era como se um botão tivesse sido desligado e ele perdesse as forças. Tentou repousar deitado à sombra para ver se melhorava.

Os guias desmontaram acampamento e seguiram adiante na trilha. Nós retardamos bastante nossa partida, saímos já era passado do meio-dia para encarar o trecho de 5 km em ascensão de 600 m incluindo vários pontos de escalaminhada em inclinações acima de 50% além da famosa La Rampa.

O Luiz disfarçou a cada passo, se fez de forte e não reclamou em nenhum momento. Estava sempre procurando tirar fotos. Uma hora depois, parou para vomitar outra vez... aproveitei para ir coletar mais água para garantir a reidratação e quando voltei ele tinha ido ao matinho... foi quando saqueei a mochila dele para reduzir o peso, devo ter deixado ele com uns 12 kgs de carga. Teimoso, quis brigar comigo, mas não me venceu.

Seguimos andando no passo que o Luiz rendia. Assim que encontramos o paredão paramos para cumprimentar o gigante conforme a tradição dos pémons. Depois, alcançamos alguns mirantes naturais ao longo da trilha que revelaram cenários distintos daqueles que víamos nas fotos, já que este trecho geralmente é feito na parte da manhã, com o paredão fazendo sombra. Chegamos ao Paso de las Lágrimas, um lugar onde o Roraima goteja a água das chuvas que se acumula no arenito e precipita das alturas, trecho escorregadio de escalaminhada, ainda mais na situação em que o Luiz estava.

Já era noite e fazia muito frio quando chegamos perto do topo, a 2700 metros. O Luiz já não tinha forças. Um dos pémons veio ao nosso encontro e ofereceu de carregar sua mochila e ele, sem hesitar, soltou-a no chão com alívio. Na mesma hora eu olhei no olho do Luiz e mexi com seu brio:

“Se ainda te resta um pouco de força, recolha essa mochila e carregue a tua carga até o fim! A gente carrega você se precisar, mas você tem que levar a tua carga! Talvez você me odeie agora por eu te dizer isso, mas depois você vai me agradecer...”.

Ele me olhou, vestiu a mochila, me abraçou e se manifestou:

“Obrigado, meu irmão! Você disse o que eu precisava ouvir”.

Conhecendo o Luiz, eu sabia que ele ia sentir um fardo pior ainda se alguém tivesse levado por ele a mochila. Confesso que só fiz isso porque não sabia a gravidade em que ele se encontrava.

Seguimos caminhando no escuro, já umas 7 horas da noite, até chegarmos ao Hotel Basílio, uma gruta onde nosso acampamento já estava montado pelos pémons. Com o corpo suado e no vento do topo a gente tremia de frio. Esquentei uma água e levei para o Luiz se lavar na barraca enquanto fui preparar um caldo quente e uma medicação. Ele batia o queixo de frio... Tomou o caldo, a medicação e capotou, agora roncando como um trator de esteira. Jantei com os pémons, preocupado com o Luiz, pois nunca o tinha visto assim, tão debilitado. Depois, fui para o berço, tentar descansar do lado daquela sinfonia da Caterpillar.

 

2ª Feira – 12 de março

No dia seguinte acordamos com a claridade. O Luiz já não estava tão ruim e começava a se recuperar. Foi quando me revelou que estava realmente mal e que só subiu porque não queria ser protagonista de mais uma história tendo que me fazer abortar a expedição, de novo, no acampamento base do Roraima. O cara é indesistível... mas xinguei ele, pois poderíamos muito bem ter ficado mais um dia na base, sem exigir dele aquela subida. Enfim, coisas do Luiz...

Na primeira manhã no topo do Roraima o tempo estava amarrado. Fizemos uma caminhada curta logo que despertamos, só pra reconhecer o terreno e matar a curiosidade, já que havíamos chegado à noite e não tínhamos visto nada. Logo voltamos e tomamos café e ainda em recuperação da subida resolvemos percorrer os destinos próximos dessa montanha em forma de platô com quase 50 km² de superfície.

Caminhamos literalmente entre as nuvens até o Abismo de La Ventana. Com o tempo fechado só dava para imaginar o abismo por onde subia um vento áspero e se chocava com as rajadas de nuvens no topo do tepui. Parecia um caldeirão em ebulição. Deitei na pedra sobre este abismo e ali me entreguei. Foi um momento de libertação onde eu literalmente me senti vulnerável, parte da montanha. Aquele momento do “caiu a ficha, estou no Roraima”!

Na volta passamos pelo Vale dos Cristais, um tapete de fragmentos de quartzo que afloram no Roraima e depois vão sendo levados pela água da chuva e preenchem o fundo das jacuzzis, piscinas naturais de águas geladas. Nesse dia caminhamos um total de 7 km. Fez frio, chuviscou, abriram janelas de sol, fez calor e tudo se repetiu várias vezes a cada hora. Banho tcheco, jantamos, o Luiz foi para o berço e eu fiquei um tempo ainda com os pémons dividindo o rum e falando da vida, até o sono pegar.

 

3ª Feira – 13 de março

No outro dia o Luizinho já estava bem melhor. Ainda assim decidimos concentrar nossa expedição na parte sul da montanha, deixando o norte para próxima vez. Partimos em busca da Pedra do Maverick, o cume do Roraima, a 2.810 metros de altitude. O céu estava despejado como dizem os pémones, tudo o que a gente desejava!

E lá chegamos! O lugar é sensacional! Que vista! Que sensação de liberdade! Ali à frente estava o irmão malvado do Roraima, o Tepui Kukenan, e no horizonte, dava pra ver a imensidão da savana venezuelana. A trilha que percorremos até chegar ao topo se perdia na vista entre as colinas. Ficamos ali um bom tempo, lembrando de todos os perrengues da expedição.

Deixamos o Maverick e partimos em direção à Cueva del Guácharo. Não botamos muita fé no lugar, afinal, o que esperar de uma caverna se você já está no topo de uma montanha? Pra nossa surpresa, descobrimos que o lugar é animal! Nem 50 metros da entrada e o breu já era total e a caverna fazia um silêncio absurdo que te deixava ouvir o sangue pulsar.

À medida que fomos entrando, ganhamos um acompanhante, um rio subterrâneo que se formava com a água cristalina que penetrava pelo arenito. De repente chegamos em um salão fenomenal, 500 metros montanha adentro. A acústica do lugar era perfeita e pedia a trilha sonora perfeita. Desligamos as lanternas e ali, debaixo da terra, paramos para curtir os solos do Pink Floyd do celular do Luiz. Saímos da caverna extasiados e voltamos para o Hotel Basílio.

No caminho, passamos pelas jacuzzis e encaramos um mergulho na água mais gelada da vida! Apesar de congelar o cérebro – e outras partes também – precisávamos daquela água. Chegamos no acampamento lá pelas 4 da tarde depois de 7 km de trote. Eu ainda tive ânimo para, às 5 da tarde, voltar para as jacuzzis e tomar um banho descente com xampu e sabonete! Nunca imaginei que faria 3 km por um banho siberiano... mas valeu a pena! Acreditem... eu estava precisando...

 

4ª Feira – 14 de março

Reservamos nosso último dia no topo para um retorno ao abismo de La Ventana. Tivemos mais sorte desta vez e conseguimos pegar céu aberto, com as nuvens chegando e saindo do topo dos tepuis. Assim conseguimos entender o lugar: duas pedras gigantes que servem de moldura para a vista de um abismo com mais de 1000 metros de altura.

Tudo fica ainda mais intrigante por conta das nuvens que fervilham entre os tepuis, como um caldeirão. E você fica ali, literalmente com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, à espera de uma janela de tempo pra avistar a paisagem. Quando as nuvens enfim dão uma trégua você entende que está no limiar. Percebe o quanto é pequeno, ou gigante, por ter conquistado aquele lugar.

Dali partimos de volta passando por dentro de uma grande arena formada pelos paredões até chegarmos ao Salto Catedral onde tomamos água cristalina direto da cascata. Mais algumas escalaminhadas e alcançamos o Lago Catedral, outra grata surpresa do gigante. Chegando ao acampamento tratamos de arrumar as coisas e descansar depois do almoço, pois no dia seguinte teríamos que encarar a descida até o Rio Tëk. No finzinho da tarde eu resolvi encarar mais um banho gelado numa pequena gruta, o Luiz vazou e encarou o banho tcheco por ali mesmo.

Quando voltei do banho o Luiz já estava acomodado na barraca. Eu o provoquei a sair, pois queria ter na retina uma última vista do Roraima. Meio relutante, introspectivo e já com saudades de casa, ele topou a parada. Pegamos nosso cantil de rum e fomos até um dos mirantes, à beira do abismo, bem perto do Maverick.

O último pôr do sol no topo do Roraima foi surreal. Era a hora certa de brindar à conquista, à superação, à amizade. Um cenário sem igual se descortinava bem em frente aos nossos olhos. O horizonte aguardava para recolher o sol. A Gran Sabana se deitava como as rugas de um lençol até se perder de vista e se fundir com aquele céu despejado. Emoldurava a cena a silhueta do Kukenan, tepui-irmão malvado do Roraima. O arrepio de frio e o vento áspero vencemos com bicadas de rum.

Naquele momento, a montanha falou lá dentro. Da primeira vez, um adolescente. Não tinha fotos, ou com quem compartilhar memórias da montanha. Só que agora era outra história recheada de fotos de todos os tipos e provas de amizade. Ainda vi meu compadre, amigo, irmão Luiz, de olhos mareados expressar o quanto o Roraima significou pra ele e o fez repensar o valor da família e dos amigos. Eu estava disposto a viajar sozinho e de presente ganhei a companhia desse parceiraço dedicado e indesistível.

Por fim, sentados ali, de frente para o vazio, chegamos à conclusão de que descobrimos o Mundo Perdido. Um cenário lunático que muda a cada instante e onde as quatro estações do ano se passam em questão de minutos.

Mas muito além de abismos e cavernas, encontramos um lugar de reencontros. Finais e recomeços. Um lugar para os bravos, que enfrentam o limiar da dor e o desconhecido.

Na mochila levamos lições e memórias. E uma enxurrada de fotos para refrescar a retina e despertar de novo o sentimento da montanha.

Fomos descobrir o Mundo Perdido. Descobrimos a gente mesmo.

 

5ª feira – 15 de março

Era hora de nos despedir do Roraima. Todas as lições já estavam na mochila e no peito. Às 8 da manhã encaramos a descida rememorando os grandes momentos. Percorremos todo o caminho de volta até chegar ao Rio Tëk à 1 da tarde, 14 km depois.

Logo partimos para a água, tirar a poeira e o cansaço. Depois, à espera dos pémons descerem a montanha, nos jogamos debaixo de uma mangueira e ficamos contemplando os gigantes no horizonte regados a rum e a solos de guitarra do Pink Floyd.

À noite me ofereci para preparar um macarrão a carbonara, para dar uma folga aos pémons na cozinha. Era o mínimo que eu podia fazer em retribuição àqueles que durante dias nos serviram tão bem. Jantamos em meio a muita risada, celebrando o sucesso da expedição.

 

6ª feira – 16 de março

Acordamos na Sexta-Feira dispostos a logo chegar em Paraitepui. Ao abrir a barraca lá estava o Kukenan, pronto para a despedida. 13 km nos esperavam até a vila, além das cervejas sonhadas há mais de uma semana.

A vontade era tamanha que partimos antes da 7 da manhã e em 3 horas já estávamos à sombra de uma churuata tilintando algumas Polar Light, a melhor pior cerveja do mundo! Viramos algumas garrafas à espera do rústico que nos levaria de volta a Kumarakapay. Às 11 da manhã o 4x4 chegou. Foram 2 horas intermináveis debaixo do sol do meio dia na carroceria do rústico.

À beira da Troncal, tentamos tirar dedo e conseguir uma carona até Santa Elena já que nos anunciavam que os ônibus tardariam muito em passar (se passassem...). Depois de horas conseguimos um taxi que recém havia desembarcado passageiros na comunidade. Os pémons dividiram conosco o taxi conduzido por um italiano naturalizado venezuelano que há muito vivia na fronteira. Um senhor pra lá de buona gente! O papo não podia ser outro: salami, formaggi, vino i la coccina italiana! Ali, naquele toyotão em frangalhos nos sentimos unidos: brasileiros, venezuelanos, pemones, italianos... mais uma grata surpresa da expedição.

Em Santa Elena pegamos novo taxi para ir até a fronteira. Nos esperou ali até darmos baixa no permiso e nos deixou em frente ao ponto de taxis coletivos da cooperativa, já no Brasil. Mais 240 km nos esperavam até o hotel que escolhemos em Boa Vista, onde chegamos já 10 da noite.

Devo lembrar que eu e Luiz somos sortudos, mas não antes de ter que encarar muito azar! O despreparado funcionário do hotel conseguiu a proeza de nos mudar 3 vezes de apartamento, além de termos recebido a visita algumas baratas jurássicas... Resultado? Mesmo exaustos daquele dia puxado resolvemos chamar um taxi e mudar de hotel.

No novo hotel logo largamos as tralhas, tomamos um banho rápido e fomos à busca de um restaurante para matar a fome, já que nossa única refeição havia sido o café da manhã. O restaurante nos enxotou às 11 da noite... nos vimos obrigados a um pit stop numa loja de conveniência para abastecer a geladeira de cerveja de verdade, com todo o malte e lúpulo que merecíamos! Depois do trago, capotamos aproveitando o ar condicionado com ventos polares.

 

Sábado – 17 de março

O sábado foi dia de dar um trato no visual. 10 dias sem fazer a barba, queimados do sol e judiados éramos o próprio exemplo do homem de Neandertal. Cada um alugou o banheiro por meia hora e deu prejuízo pra conta de combustível da caldeira do hotel. Depois, catamos uma churrascaria mais ou menos, mas já deu pro gasto. À noite fizemos check-out do hotel e ficamos pelo centro, jantamos uma pizza e refrescamos a garganta até dar a hora de ir para o aeroporto, de madrugada.

 

Domingo – 18 de março

O domingo foi aquele chá de aeroporto... 12 horas no total em três voos de conexão. Chegamos em Foz do Iguaçu e ainda tínhamos 320 km de estrada pela frente, incluindo o ingresso e a saída da Argentina, cruzando os parques em Misiones. O Luiz veio roncando no banco do carona enquanto eu guiava o carro, ansioso para chegar em casa.